sábado, 6 de novembro de 2010

Céu da Mouraria - MADREDEUS / Wim Wenders

POÉTICA & MUSICA - Entre Fernando Pessoa e Walt Whitman

Poética: Entre Fernando Pessoa e Walt Whitman

Assisto ao DVD “Estranha forma de vida”, de Amália Rodrigues, que Dulce Pontes interpreta, dando ainda mais dramaticidade. Encontro-me em êxtase poético e ainda nem fumei ópio. Um sentimento lusitano me invade. Sinto ânsia de mar e uma angústia peninsular vem me arrebatar. Arranca-me de mim e pelas mãos me leva a visitar lugares em Portugal. Locais que eu nunca estive. Talvez sodade, este fado lusitano de estar sempre se redescobrindo.
Fernando Pessoa me conduz a passeio pela tarde de Lisboa. O sol em raios lânguidos deita-se sobre o mar de manso. A tarde lisboeta é cinzenta, com raros lumes e um tanto sem cores. Os telhados dos sobrados próximos ao cais estão sobressaltados de solidão aspergida pela dor das naus que não regressaram.
Poesia é precisa e insensata. Eu sou insensato e impreciso. Um amigo me diz que tenho alma feminina. Não me importo com a lembrança desta observação. Talvez seja isto que me faça entender tanto as mulheres, sofrer por elas, e saber e querer amá-las, tanto!
- Vamos até o Café À Brasileira? – me convida Fernando Pessoa. Sem pudores, nos demos as mãos e fomos ao Café. O ambiente é emblemático. Dizia-se que no Porto e Coimbra se estudava e trabalhava, mas era em Lisboa, no Café À Brasileira, que se faziam revoluções. O poeta se sente à vontade. Declama um poema ao Tejo. - “Viver não é preciso”, caríssimo Fernando! Faço esta óbvia e inequívoca constatação quase sem refletir a quem destinei o precioso dístico. Com os pés fincados nas águas do Tejo, sonho com outros rios, os rios de minha aldeia. Ela é tão pequenina e está perdida na história portucalense e brasileira. O poeta quase me consola, enquanto uma saudade dilacerante e esse remetimento tomam conta de mim.
- Que brisas me sopram da Cruz do Monte?
Decerto, não é a mesma que invade a foz do Tejo, trazendo ares salobros de oceanos. E mais uma que vem a sueste, lufada de áridos clamores dos desertos marroquinos. Não me arrefecem tais ares, ao contrário, inflamam minh’alma estertora que crocita em respiração oblíqua, buscando os ares de minha terra e a lembrança de minha aldeia.
- Que lamentos me vêm da Cruz-das-dores?
Não são os lamentos das costas africanas lanhadas por mares bravios. São, na verdade, lembrança de gemidos que deixei alhures, lugares anteriores ao caos, pouco antes de me pregarem na cruz.
Comemos, bebemos e rimos (um pouco tristes) no Café À Brasileira. Minha alma aflita não se susteve, nem com o repasto nem com o vinho. Fernando Pessoa amava Walt Whitman. Com os olhos mirados no Tejo, o poeta declama “Saudação a Walt Whitman”, depois um fragmento de “Canto a mim mesmo”: “Eu sou um poeta do Corpo/ e sou um poeta da alma/ as delícias do céu estão em mim/ e os horrores do inferno estão em mim/ - o primeiro eu enxerto e amplio ao meu redor/ o segundo eu traduzo em nova língua...”
Não era para você chorar, Fernando. Era eu que deveria estar em prantos no teu colo e você, poeta, a me consolar. Mas eu não tenho o recato de uma dama da aristocracia inglesa. Sou prostituta, plebéia, cachorra, “periguete”, querendo te beijar a boca para arrancar de ti tua poesia e dela me apossar para me tornar poeta.
Com seu jeito fleumático, altivo, frágil, olhar descomprometido por detrás do pince-nez, timidez de magreza esquálida, quis ele me confessar seus amores, suas desditas. Eu não tinha ouvidos para seus lamentos. Pedi-o licença, tinha mais urgência em revelar-lhe minha vida ordinária, sem nada de extraordinário, sem poesia, muito simples, sem sobressaltos ou coisa grande, notória, que merecesse menção ou relato mais detido. Nada. Absolutamente nada! A não ser essa incapacidade de ser poeta e a crença de que ao beijar-lhe a boca também me tornaria poeta. E através do agraciado dom, pudesse expulsar meus males em poemas catárticos, sem valor algum, é verdade, mais de muita sanidade para esta alma doente, sem ninguém para consolação, sem sorte nenhuma amasiada. Nem de ter, pelo menos, uma amante para falsamente me amar e eu lhe confessar as inconfessáveis dores d’alma.
Fechei o livro de Fernando Pessoa, repousei-o sobre a mesa, coloquei junto os óculos, desliguei o DVD. Queria ser Walt Whitman!
refrago@gmail.com

MUSICA & POÉTICA Madredeus: "O Tejo"

sábado, 16 de outubro de 2010

CRÔNICA

O pão nosso de todo dia
Ainda não são cinco horas da manhã e já estou zumbizando pela cidade. Bondês é deserta nessa hora. Quem me ensinou este novo adjetivo pátrio foi a Silvana Gontijo. Ela me adicionou ao seu “Face” e eu lhe dei minha outra face.
- “Bondês” é uma palavra afeminada, minha consciência machista me avisa.
No entanto, para mim tanto faz, pois eu poderia ser Valéry, Rimbaud, Wittiman, Byron, Keats ou Bukowski e não mudaria nada.
A esta hora da manhã, uma inquietude somítica me impulsiona no encalço do vil metal, me impõe um vagar frenético pela cidade, a pensar razões e soluções para mim e para o mundo. Dizem que escritores, poetas e outros loucos são insones e notívagos. Eu sou matutino, Felliniano e kafkiano in-Pessoa. Não preciso de diagnóstico oficial. Sou louco varrido por decreto de poesia.
O mendigo adormecido sobre uma quase lápide na rodoviária, acolhe sua parceira com quem divide uma abundante escassez sob o cobertor “sapeca nigrinho”. – Ôpa! Isto não é etnicamente incorreto? Mas eu sou nigrinho! Talvez o amor seja isso mesmo: dividir o que menos se tem. Mesmo quando não se tem nada para dividir, ou se tem em muito: dor, fome, sofrimento, penúria, miséria. O amor, quando se estabelece nessas condições, é o amor fino do qual nos fala Padre Vieira em Sermão do Mandato.
Esta crônica está se tornando densa, intensa, está tomando rumo próprio, rota de poesia. E eu não quero escrever poesia! Quero apenas escrever sobre o tema que escolhi.
- Mas a poesia me escolhe. Espicha-me. Me encolhe. A palavra se desprende de mim como um dente que se solta da boca. A poesia deixa meu coração banguelo.
O inquietamento me joga para fora da cama, para fora de mim, do meu sossego, me atira na rua e eu já estou a caminhar pela cidade. Na Praça da Estação, além das majestosas palmeiras imperiais e árvores portentosas, também estão os miseráveis, que meu coração impessoal ignora, enquanto me remete ao poema “O Bicho”, de Manuel Bandeira: "Vi ontem um bicho/Na imundice do pátio/Catando comida entre os detritos/Quando achava alguma coisa,/Não examinava nem cheirava:/Engolia com voracidade./ O bicho não era um cão,/Não era um gato,/Não era um rato/O bicho, meu Deus, era um homem." Ainda há pouco eu os queria desterrar.
Vou à padaria comprar pão quentinho, com aroma irresistível, saído na primeira fornada.
- Não tem pão quente. Todos estão assim. As encomendas... Tenta a balconista justificar o injustificável.
- Moça, aonde posso comprar um pão quentinho às cinco da matina, a não ser numa padaria, que deveria ter pão fresquinho a esta hora matutina?
- Não tem!
E quase me fuzila com seu olhar inclemente.
- Que cara chato! Como me aparece um mala desses a esta hora da manhã?
Deve pensar a mocinha que se derrama em gentilezas e justificativas vãs, cinicamente. As padarias, como as pessoas, se tornaram impessoais. Não te olham nos olhos, não decifram o freguês de carne e osso de um papel, solicitando: Sessenta pães! Na economia de escala, sobra o indivíduo.
Que importância tem isso, afinal? Não vou deter o mundo se encontrar um pão quente. Não vou saciar a minha fome nem a dos mendigos. Nem eles deixarão de revirar o lixo como animais à procura de comida. Nem eu também deixarei de revirar minh’alma à procura do meu lixo humano, à procura de comida: matéria de poesia.
Quem não tem pão, come capim como eu, para deixar de ser tolo. Já se foram os tempos dos pães quentinhos recém saídos do forno. Como se foram os tempos em que o senhor Cristiano Oliveira, tão dócil e humano que lhe cresciam asas de anjo, e sua charrete metalizada, distribuía pães às casas, batendo com o cabo chicote na lataria da charrete:
- Padeeiiroo! Toc, toc, toc... Padeeiiroo!
É meu coração que atende. São minhas mãos que recebem aquele pão aquecido com o seu calor humano na madrugada fria.
Eu não sou louco, nem poeta, nem Rimmbaud, nem Wittiman, muito menos Byron ou Keats. Charles Bukowski, talvez. Apenas a minha alma inquieta tem fome de pão e poesia.
Que me perdoem as meninas da padaria! Elas irão pro céu. Eu, para Andaluzia! Que é só uma rima, pois eu irei mesmo é para p... Barbacena, eu diria.
refrago@gmail.com

domingo, 3 de outubro de 2010

Primeira Pessoa e Segunda Pessoa




Primeira Pessoa

Ouço o som sustenido de garças
a esfalfarem-se em horizontes sem águas,
tementes de serem azuis.

Falo por continentes instáveis,
como Pedro que virou pedra,
a proclamar evangelhos de João.

Sonho como um oceano náufrago
em garrafa de champanhe,
a borbulhar estrelas no céu de tua boca.

Vejo um diagrama de planctos
saciados de escamas, arrancadas
do solidéu de cardeais profanos.

Algo assim como algas com medo de sóis
como faróis em solidão de mar - a luz que me guia
Para atracar-me em teu cais.


Segunda Pessoa

Retines entre canyons e vales,
reverberas em ecos, em vértebras.
Curvilíneo,
meu sentido de sino
É dobrar-me aos teus pés.

Amores fósseis, inúteis,
pólens para fecundação de núvens
e germinarem tempestades no meu coração.

Sou por vós e por outrem
a dor de ambos, dissociados
em um só, siameses em um amor partido.
(Bruxo)

FADO

Um Fado
Quando oiço um fado lisboeta,
Algo, por fora me escraviza,
Outro, por dentro, me liberta.
Assim, impreciso, singro mares à guisa...

Quando oiço um fado de Amália,
Cospe-me o vulcão à vida insana,
Corta-me, lanha-me, me espalha
Ao longe, ao derredor da Taprobana...

Ao ouvir esses fados lusitanos,
Vem-me de Belém os sinos soberanos
Junto uma dor, uma solidão insular.

Ao ouvir esses fados d’Além Tejo,
Vem-me insopitável desejo,
De me navegar além de mim, muito além d’além mar.
(Para Amália Rodrigues e Dulce Pontes)
A voz (Íris Lettieri)

A voz derramada em cântaros
No saguão, no centro, nos cantos,
Cânticos, bálsamo inebriante, antes do vôo.
A voz que flui melíflua, flutua, nua, sem versos,
Ordenando suave o caminho.
Fora da nave, na neve ou em Java,
Jorra aveluda voz.
Nem parti e meu coração já quer voltar para voz,
Íris, luz é vós a guiar-me nos vôos para dentro de ti.
(Num vôo no GALEÃO-Antônio Carlos Jobim).

Poema

Augusta

Singro por oceanos bravios
Vasculho tua rota em rotos pergaminhos
Exilo-me nos cais a te esperar
Sou tua bússola sem norte
Por onde andas?
Sobre águas?
Sob nuvens?
Cinge teu corpo na solidão do meus braços
em mares e marés, num vaivém que adormeces.

Grito-te em vocativos oceânicos
Sem te alcançar.

(Bruxo)

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Posidônio e o pum causador do efeito estufa

Possidônio e pum causador do efeito estufa
Possidônio é um matuto que mora nas margens do rio São Francisco, próximo ao povoado da Extrema, nos limites dos municípios de Bom Despacho, Dores do Indaiá e Martinho Campos. Ele tem um pequeno pedaço de terra, um ranchinho construído a sopapo, é autodidata, vive escarafunchando todas as novidades do mundo moderno nos jornais, revistas e livros. Letrou-se assim. Agora, discute Platão, fala sobre o Acelerador de Partículas, Shakespeare, política, etc. Ainda conserva certa ingenuidade. Seus modos e jeito caipira não mudaram. Mas para maioria das coisas da vida é bastante astuto.
Cheguei à sua casa e o encontrei com dois balaios enormes cheios de rolhas de cortiça.
- O que é isto, Possidônio? Você tresvariou?
- Ainda não, sô! Vou proteger a camada de Ozônio. Veja isto aqui.
E mostrou-me uma dessas revistas na área das ciências. Ela trazia uma reportagem sobre as causas do efeito estufa. E dentre elas estavam o arroto e o pum de ruminantes.
- Tá veno só? Porque eu preciso arroiá o fiofó deles?
E mudando de página, mostrou-me que na Nova Zelândia o governo queria instituir um imposto sobre flatulência animal.
- Tá ficando ruim da cabeça?
- Tô não não, sô! Viu? Do jeito que nossos políticos gostam de impostos, daqui a pouco será mais um para o povo pagar e eles lá em cima roubarem! Onde já si viu uma coisa dessas, pum zangar a camada de ozônio?
Depois de ler a reportagem, tentei explicar-lhe que o dano ambiental era causado porque os ruminantes durante o processo digestivo liberavam o gás metano, que é um gás altamente danoso à camada de Ozônio.
- Quer dizer que: arrotando ou soltando pum, minhas ovelhas e meu gado estão contribuindo para o aumento do aquecimento global?
- É por aí, Possidônio.
- Mais um motivo para eu arroiá e’s tudo!
Não consegui demovê-lo da idéia ecologicamente correta. Depois de passar toda manhã vedando os “tobas” dos ruminantes de seu sítio, ele deu as caras para o almoço. Sentamos à mesa. Tomamos uma dose homeopática de cachaça na cuia, agradecemos a Deus aquela refeição e quando começaríamos a nos deliciar daquela apetitosa galinha caipira com arroz branco, ouvimos alguns estrondos no pasto. Saímos apressadamente para ver o que acontecia... Pôu! Pôu! Pôu! Explosões aqui e acolá, por todo lugar. Chegamos à beira do curral e era só boi, vaca, bezerro e ovelha explodindo.
- Eh! Acho que eu não deveria ter amarrado também a boca deles, não é?
refrago@gmail.com

Só as cachorras me amam de verdade

Só as cachorras me amam de verdade
(A matemática do amor)
Casei-me por seis vezes, embora sempre quisesse um relacionamento duradouro. Não chegarei ao sétimo, porque além de sete ser conta dos mentirosos, o número sete é também cabalístico. Errei nos cinco casamentos anteriores. E não pretendo errar mais. Para isto desenvolvi uma tecnologia: “A Matemática do Amor”. Não estou sendo nem um pouco original. Ela já existia, embora não a conhecesse. Nela encontrei os parâmetros irrefutáveis e precisos no auxílio à busca de uma esposa e de um relacionamento perfeitos. Foi somente mais tarde que tomei conhecimento de um trabalho mais aprofundado de um psicólogo americano.
Nunca ouviu falar na “Matemática do Amor”? No meu estudo, e eu nunca fui lá de muito estudo, ela não passa de uma aritmética do relacionamento e consiste mais ou menos no seguinte: homem esperto + mulher esperta= romance; homem esperto + mulher burra = caso; homem burro + mulher esperta= casamento; homem burro + mulher burra= gravidez. Obviamente que o trabalho do psicólogo americano é muito mais elaborado e envolve variáveis como: companheirismo, cumplicidade, amizade, sexo, respeito, fidelidade, etc., como elementos de mensuração de um relacionamento perfeito. Talvez seja por isso que os cinco primeiros casamentos não tenham dado certo.
Se fui feliz nesses casamentos? Fui sim. Por dez vezes. No dia da lua-de-mel e no dia da separação. Não me condene. Você provavelmente esteja passando por isso. Mas vai um conselho de quem tem experiência no assunto: não se precipite. Aplique a “matemática do amor” ao seu relacionamento. É muito simples: de um lado enumere dez sentimentos e comportamentos positivos seu e de sua companheira, dê notas de 0 a 10 para cada um dos itens. Na outra coluna, enumere as 10 coisas negativas entre vocês (as piores, como não levantar a tampa do vaso ao fazer xixi ou aquele pijama velho dela, coisas que desgastam o relacionamento no dia a dia). Deu nota para cada um dos itens? Para eficácia do teste, volto enfatizar, não deixe nada de fora da lista. Os defeitos escabrosos principalmente, como aquelas suas falhas de ereção ou a frigidez dela. Agora some os pontos de cada coluna, positivos e negativos. Veja o resultado: se a diferença entre eles for acima de 50% negativa, me perdoe, mas vocês dois são homo afetivos. Tratem de procurar seus pares. Se a diferença for de 40% a 10% negativa, vocês são incompatíveis. Procurem um advogado, é caso perdido. Se a diferença for 0%, vocês estão no limite do relacionamento, procurem ajuda, façam terapia de casal. De 10 a 30% positiva, relacionamento instável, mais diálogo entre vocês e resolvam os pontos negativos. De 40 a 60%, vocês estão na média nacional das grandes cidades. Ninguém consegue manter um relacionamento perfeito saindo de casa às cinco da manhã e voltando as dez da noite. Você mora no interior? Então precisa melhorar. Entre 70 e 80%, vocês não têm preocupação com o casamento. Moram em condomínios de luxos, têm carros importados, vivem uma vida de aparências, ambos têm amantes e se acham muito felizes com a falsa vida que levam. Agora, se a diferença for maior que 99% positiva, o teste não tem validade, pois não vale fazê-lo com amante.
Estava me esquecendo: “só as cachorras me amam de verdade” foi um título aleatório. Mudei de assunto no transcurso do texto. Mas para criar nexo entre ambos, farei um remendo aqui neste ponto. O meu sexto casamento é perfeito. Ela tem um personal exclusivo (bota exclusivo nisto), carro importado e um cartão de crédito sem limites. Fica o dia inteiro no shopping fazendo compras, enquanto eu fico cuidando de minhas “cachorras”.
victorlasson@gmail.com
Victor Laçon

Victor Laçon, francês, 41 anos, jornalista e escritor, apaixonado pelo Brasil, mais pelas brasileiras, radicado no Rio há 11 anos. É correspondente do Le Monde ou Le Figaro
“Batendo na porta do céu”

É segunda-feira. É hora de partir. Voltar para a grande metrópole Tomo emprestado de Pablo Neruda um verso de “A Canção Desesperada”: “É a hora de partir. Oh abandonado”. Vejo a cidade saindo de mim através da janela do carro.
A casa ficou me olhando. A mulher me olhou quase triste. Olharam-me languidamente meus cachorros. Os filhos já não me vêm partir. A manhã inteira se despede de mim: é hora de partir.
Saindo da cidade, vejo uma criança caída de sua bicicleta. Será que ele despencou do céu? Está imóvel o pequeno anjo. Pessoas atônitas correm em seu socorro. Carros param, interrompem seus trajetos e seus destinos. Só eu cumpro inexoravelmente com o meu: é hora de partir. Ouço um “toc-toc”. O pequeno anjo bate à porta do céu. São Pedro não permite a entrada de crianças às segundas-feiras pela manhã. Ainda é muito cedo para morrer. Os serafins harpejam canções de despertar para o menino. Deitado de bruços, com o rosto colado no asfalto, ele sonha que dança com arcanjos. O mundo inteiro para ao seu redor, menos eu. O menino deitado torto no chão. A bicicleta retorcida ao seu lado. Minha cabeça se contorcendo para trás para vê-lo ressuscitar. “Toc toc toc”, ele está batendo na porta do céu. É muito cedo para morrer, menos para mim que já morri.
- Acorde, levante-se e vá brincar. Diz São Pedro ao pequenino.
Meus pensamentos e meus olhos tomam outro rumo. Meu coração, não. Meu coração ficou lá, esquecido naquela esquina, estendido no chão junto ao garoto que caiu da bicicleta.
- Qual é o seu nome? Qual é a sua idade? Mas ele é um anjo. E os anjos não morrem jamais.
Já cruzei a cidade. Agora estou na rodovia. Vejo um cachorro abandonado. Como o menino caído, ele pede em silêncio por socorro. Tem um olhar triste e um desespero contido. Ao menor sinal de ajuda, seu pequeno rabo balança alegremente. Queria ampará-lo, o cachorro. Ressuscitar o menino da bicicleta.
Transformei-me em um refém de minhas idas e vindas. E não consigo parar. Não parei para socorrer o menino. Não parei para acolher o cão sem dono. Segui o meu rumo arrastado pelo destino de estar sempre partindo. Mas meu coração, não. Acolheu o cão sem dono, lambendo-o com alegria. Ficou com o menino, ajudou-o a se levantar e saíram os dois a Brin car.
Não sei qual foi o desfecho de nenhuma das duas histórias. Quando estiver de volta saberei. Tramo finais felizes para o menino e o cachorro. Mudo o destino das pessoas e das coisas sobre as quais escrevo. Só não mudo o meu destino. Preciso reescrever a minha história.
Fragmentos de mim vão ficando para trás na estrada. Cacos de uma vida a serem recolhidos e colados. Talvez seja a hora de fazer o caminho de volta e ir colando-os um a um.
Talvez seja eu o menino que está caído no chão.
O cachorro abandonado talvez seja eu.
Só eu não mudo minha tragédia diária.
Como na canção de Bob Dylan, sou eu quem está batendo na porta do céu.
“Toc toc toc”, estou batendo na porta do céu.
refrago@gmail.com







































A casa do Peladinho

Num lugar chamado Boa Vista, retirado uma vintena de quilômetros para leste da cidade de Paineiras, nasceu José, de nome. Peladinho, de apelido. Causa de uma derribada abrupta dos cabelos. Daí, Peladinho. Uns 65 anos. Mais de cinquenta só naqueles ermos. Alto, magro, moreno, quase escuro, olhos verdes, fala mansa, baixa, às vezes inaudível, que mora deserdado de tudo e de todos naquele alto de planície à beira de um pequeno riacho, virado rio-lagoa grande, varada de águas, juntadas pela mão do homem, e solidão. Muita solidão.
A casa é simples. Simplesinha. Rústica. Rusticazinha. Lugar bom de morar. Bonzinho. Assim é a casa do seu Zé Peladinho. Construída por ele, com seus braços, com seu suor, sem nenhuma razão geométrica, no bestunto. Tudo no olho. O resultado é uma casa com janelas pequenas e tortas, paredes desalinhadas, toda assimétrica, mas acolhedora. Muito acolhedora.
A casa, como tudo em sua tortuosa vida, é fora do esquadro, fora dos eixos, sem cálculos, imprecisa, um desencontrar constante das linhas do destino com as da felicidade. Mas será que foi ele mesmo que projetou assim, a sua casa, a sua vida? Ou, talvez, foi ela (a vida) que o aprisionou, para que ele lhe fizesse as vontades assim. Ou, ainda, assim como a casa que se lhe ia brotando, e lhe ordenando como queria ser construída. A casa transformou-se em refúgio para almas inquietas e Peladinho, em um uguento à base de amizade e tolerância para com os inquietos que passam por lá. E por lá, ficam.
Por uns tempos teve mulher e filhos, mas depois a mulher largou-se dele e daqueles ermos, passando a mão nos dois rebentos, apartando-se daquele sofrimento, de tudo dificultoso e de coisas minguado, depois que ele passou quase seis meses numa carvoaria e, quando voltou, tinha se ido todo mundo. Só ficaram o cachorro e aquela dor insuportável.
Abateu-se não, o senhor José. Criou força e raízes naquele desconsolado lugar, agora de muitas águas represadas, como seu sofrimento, muito eucalipto de plantio e algumas almas errantes, como esta que vai buscar adjutório, bálsamo, para seus dolorimentos e compressa fria para sua alma “dilurida”, naquelas distâncias de sentimentos e de pessoas, só pássaros, animais serpentes e outros bichos escassos também pela mão do homem e solidão. Muita solidão.
A casa tem sala com cristaleira, um arreio enfiado numa travessa nos umbrais que sustentam as vergas, três quartos, sala e cozinha, em antes, uma chifraria de cabeça de gado encalcado num mourão de cerca para espantar os maus espíritos. Um quarto à esquerda, onde ele dorme, com duas camas de solteiro cobertas por colcheline e colcha de retalhos. Outro quarto à direita, menor, uma espécie de despejo para tralhas de cavalo e ferramentas de roça. E mais um à esquerda, contíguo ao primeiro, este agora parece repleto de entulhos: fotografia a lambe-lambe da família com um ar distante de felicidade nos rostos, como se adivinhassem o futuro. Dois vidrinhos, um com lágrimas dos meninos, outro, que fica à mostra, com riso, quase gargalhada, deles. Amontoado num canto do quarto, um tiquinho de felicidade, varrida daqui, acolá e juntada e dela ele não quer se dispor. Também tem guardado na gaveta da cômoda um punhado de desilusão, da qual ele não consegue se livrar. Junto ao montinho de felicidade, tem um amontoado de esquecimento que, vez em quando, vem o vento da lembrança reavivar. A cozinha com fogão a lenha, uma prateleira de madeira escurecida e as paredes, pela fuligem, uma geladeira antiguíssima e utensílios, todos muito areados, espalhados sistematicamente pelas prateleiras. Sistematicamente desordenados.
A casa tem sua frente voltada para o poente, deste modo é como se o sol entrasse pela porta da cozinha e saísse pela porta da sala. Na verdade, é a vida que lhe entra pelos fundos e escapa-lhe pela frente, não se pousando em nenhum cômodo, como a felicidade que passa direto por ali, sem pouso. Não tem sofrimento nisso. Só fato. Constatação. Sem afetação, porque o seu Zé Peladinho agarra a vida de frente, como se ela um boi bravo fosse. Arrasta aquelas precatas desde em antes de o sol nascer, até ele se pôr por inteiro por detrás do eucaliptal e do horizonte. Vagando e labutando. Labutando e vagando.
Vai assim ele, pois, arrastando elas, as precatas, desviando de cobra e bicho, mulher vagabunda, sofrimento e os outros tantos perigos desta vida terrena, sem ter com quem prosear, não por faltar assunto, mas por falta de outro igual que lhe estenda a mão, a atenção e a compaixão, não que desta última ele necessite. Mas gente humana para lhe ouvir as histórias, como este que quase pula para dentro daquela vidinha simples, invejando-lhe o tanto de nada feito, os desencontros, o partir e o ficar, como o mistério da vida diária naqueles arredados de tudo, até do olhar de Deus, querendo atalhar a vida, fazer a travessia, deixar tanto sofrimento na outra margem do rio, porque viver é muito perigoso. Muito perigoso
refrago@gmail.com