sábado, 16 de outubro de 2010

CRÔNICA

O pão nosso de todo dia
Ainda não são cinco horas da manhã e já estou zumbizando pela cidade. Bondês é deserta nessa hora. Quem me ensinou este novo adjetivo pátrio foi a Silvana Gontijo. Ela me adicionou ao seu “Face” e eu lhe dei minha outra face.
- “Bondês” é uma palavra afeminada, minha consciência machista me avisa.
No entanto, para mim tanto faz, pois eu poderia ser Valéry, Rimbaud, Wittiman, Byron, Keats ou Bukowski e não mudaria nada.
A esta hora da manhã, uma inquietude somítica me impulsiona no encalço do vil metal, me impõe um vagar frenético pela cidade, a pensar razões e soluções para mim e para o mundo. Dizem que escritores, poetas e outros loucos são insones e notívagos. Eu sou matutino, Felliniano e kafkiano in-Pessoa. Não preciso de diagnóstico oficial. Sou louco varrido por decreto de poesia.
O mendigo adormecido sobre uma quase lápide na rodoviária, acolhe sua parceira com quem divide uma abundante escassez sob o cobertor “sapeca nigrinho”. – Ôpa! Isto não é etnicamente incorreto? Mas eu sou nigrinho! Talvez o amor seja isso mesmo: dividir o que menos se tem. Mesmo quando não se tem nada para dividir, ou se tem em muito: dor, fome, sofrimento, penúria, miséria. O amor, quando se estabelece nessas condições, é o amor fino do qual nos fala Padre Vieira em Sermão do Mandato.
Esta crônica está se tornando densa, intensa, está tomando rumo próprio, rota de poesia. E eu não quero escrever poesia! Quero apenas escrever sobre o tema que escolhi.
- Mas a poesia me escolhe. Espicha-me. Me encolhe. A palavra se desprende de mim como um dente que se solta da boca. A poesia deixa meu coração banguelo.
O inquietamento me joga para fora da cama, para fora de mim, do meu sossego, me atira na rua e eu já estou a caminhar pela cidade. Na Praça da Estação, além das majestosas palmeiras imperiais e árvores portentosas, também estão os miseráveis, que meu coração impessoal ignora, enquanto me remete ao poema “O Bicho”, de Manuel Bandeira: "Vi ontem um bicho/Na imundice do pátio/Catando comida entre os detritos/Quando achava alguma coisa,/Não examinava nem cheirava:/Engolia com voracidade./ O bicho não era um cão,/Não era um gato,/Não era um rato/O bicho, meu Deus, era um homem." Ainda há pouco eu os queria desterrar.
Vou à padaria comprar pão quentinho, com aroma irresistível, saído na primeira fornada.
- Não tem pão quente. Todos estão assim. As encomendas... Tenta a balconista justificar o injustificável.
- Moça, aonde posso comprar um pão quentinho às cinco da matina, a não ser numa padaria, que deveria ter pão fresquinho a esta hora matutina?
- Não tem!
E quase me fuzila com seu olhar inclemente.
- Que cara chato! Como me aparece um mala desses a esta hora da manhã?
Deve pensar a mocinha que se derrama em gentilezas e justificativas vãs, cinicamente. As padarias, como as pessoas, se tornaram impessoais. Não te olham nos olhos, não decifram o freguês de carne e osso de um papel, solicitando: Sessenta pães! Na economia de escala, sobra o indivíduo.
Que importância tem isso, afinal? Não vou deter o mundo se encontrar um pão quente. Não vou saciar a minha fome nem a dos mendigos. Nem eles deixarão de revirar o lixo como animais à procura de comida. Nem eu também deixarei de revirar minh’alma à procura do meu lixo humano, à procura de comida: matéria de poesia.
Quem não tem pão, come capim como eu, para deixar de ser tolo. Já se foram os tempos dos pães quentinhos recém saídos do forno. Como se foram os tempos em que o senhor Cristiano Oliveira, tão dócil e humano que lhe cresciam asas de anjo, e sua charrete metalizada, distribuía pães às casas, batendo com o cabo chicote na lataria da charrete:
- Padeeiiroo! Toc, toc, toc... Padeeiiroo!
É meu coração que atende. São minhas mãos que recebem aquele pão aquecido com o seu calor humano na madrugada fria.
Eu não sou louco, nem poeta, nem Rimmbaud, nem Wittiman, muito menos Byron ou Keats. Charles Bukowski, talvez. Apenas a minha alma inquieta tem fome de pão e poesia.
Que me perdoem as meninas da padaria! Elas irão pro céu. Eu, para Andaluzia! Que é só uma rima, pois eu irei mesmo é para p... Barbacena, eu diria.
refrago@gmail.com

domingo, 3 de outubro de 2010

Primeira Pessoa e Segunda Pessoa




Primeira Pessoa

Ouço o som sustenido de garças
a esfalfarem-se em horizontes sem águas,
tementes de serem azuis.

Falo por continentes instáveis,
como Pedro que virou pedra,
a proclamar evangelhos de João.

Sonho como um oceano náufrago
em garrafa de champanhe,
a borbulhar estrelas no céu de tua boca.

Vejo um diagrama de planctos
saciados de escamas, arrancadas
do solidéu de cardeais profanos.

Algo assim como algas com medo de sóis
como faróis em solidão de mar - a luz que me guia
Para atracar-me em teu cais.


Segunda Pessoa

Retines entre canyons e vales,
reverberas em ecos, em vértebras.
Curvilíneo,
meu sentido de sino
É dobrar-me aos teus pés.

Amores fósseis, inúteis,
pólens para fecundação de núvens
e germinarem tempestades no meu coração.

Sou por vós e por outrem
a dor de ambos, dissociados
em um só, siameses em um amor partido.
(Bruxo)

FADO

Um Fado
Quando oiço um fado lisboeta,
Algo, por fora me escraviza,
Outro, por dentro, me liberta.
Assim, impreciso, singro mares à guisa...

Quando oiço um fado de Amália,
Cospe-me o vulcão à vida insana,
Corta-me, lanha-me, me espalha
Ao longe, ao derredor da Taprobana...

Ao ouvir esses fados lusitanos,
Vem-me de Belém os sinos soberanos
Junto uma dor, uma solidão insular.

Ao ouvir esses fados d’Além Tejo,
Vem-me insopitável desejo,
De me navegar além de mim, muito além d’além mar.
(Para Amália Rodrigues e Dulce Pontes)
A voz (Íris Lettieri)

A voz derramada em cântaros
No saguão, no centro, nos cantos,
Cânticos, bálsamo inebriante, antes do vôo.
A voz que flui melíflua, flutua, nua, sem versos,
Ordenando suave o caminho.
Fora da nave, na neve ou em Java,
Jorra aveluda voz.
Nem parti e meu coração já quer voltar para voz,
Íris, luz é vós a guiar-me nos vôos para dentro de ti.
(Num vôo no GALEÃO-Antônio Carlos Jobim).

Poema

Augusta

Singro por oceanos bravios
Vasculho tua rota em rotos pergaminhos
Exilo-me nos cais a te esperar
Sou tua bússola sem norte
Por onde andas?
Sobre águas?
Sob nuvens?
Cinge teu corpo na solidão do meus braços
em mares e marés, num vaivém que adormeces.

Grito-te em vocativos oceânicos
Sem te alcançar.

(Bruxo)