terça-feira, 18 de janeiro de 2011

A “Portuguese Sausage” do padre

O pecado nasce com a nossa condição humana. No cristianismo ele pretende explicar a origem da imperfeição do ser humano. Nós cristãos acreditamos que nascemos sob o pecado original congênito. No livro do “Gênesis” ele é enunciado como um desejo, de poder. “Se comeres desse fruto conhecerás o bem e o mal, e se tornarás como Ele”, disse a serpente tentando Eva.
Mas afinal, o que é o pecado? Pecado é a transgressão da lei de Deus.
Comer é pecado? Não! Mas a glutonaria é. A gula foi tratada por Paulo em “As Obras da Carne” (Gálatas 5:19-21), onde ele prega que os excessos é que são pecaminosos.
De fato, aqui começa nossa história. E ela transcorre assim:
Um padre, amante, digo, devoto da boa culinária e longe, muito distante da glutonaria e da bebedice, descobriu uma verdadeira iguaria gastronômica: um embutido muito importante para a dieta do homem há muitos séculos, produzido artesanalmente pelo Fabinho, da Casa de Carnes Lopes.
Os primeiros indícios mencionando este tipo de alimento de carne foram encontrados em um jogo grego chamado "O Orya” ou "A Linguiça", criado aproximadamente em 500 A.C. Depois disso a palavra linguiça aparece com frequência em escritas gregas. Também foi a comida predileta dos romanos e ficou tão popular em ocasiões festivas que chegou a ser proibida pela igreja.
Depois desta auleta pedante - quisera eu que auleta fosse diminutivo de aula ao invés de significar tocador de “aulo” ou flauta – o Fabinho fez a linguiça seguindo a receita do padre Tiãozinho, incrementada, a seu pedido, com bastante pimenta ardida. Assim a linguiça do padre ficou, com o perdão da má palavra, bem picante. A casa de carne do Fabinho, observando as exigências modernas, adaptou-se e passou a servir churrasco acompanhado de uma cerveja geladinha para os adeptos, que não são poucos, do “happy hour”.
Ali, pilotando a churrasqueira, encontramos o popular e bem humorado Pagúia, que tem como auxiliar o Giannequini, o Paulo, apelidado pelo Binga, sem falar na santa paciência da Ana Lúcia. Todas as tardes, sob as graças da boa gastronomia, a romaria se dirige para Fabinho para tomar sua cerveja e se deliciar com as carnes, principalmente com a linguiça do padre. E ela tornou-se tão popular que se transformou no pedido número um dos comensais.
A linguiça do padre Tiãozinho caiu no gosto e na boca povo, ganhou fama intermunicipal, alcançando a capital Belo Horizonte e, porque não, a cosmopolita Japaraíba, cidade natal de nosso amado presbítero. “Faz a fama e deita na cama”, diz o ditado. E os pedidos aumentando...
- Me manda a linguiça do padre, pedem alguns.
- Que delícia esta linguiça do padre, repetem outros.
- A linguiça do padre é divina! Proclamam os fiéis.
- Esta linguiça do padre é de dar água na boca, confessam os glutões.
A linguiça, que antes pertencia apenas ao Fabinho, passou a ser do padre e a agora é de todos os confrades do açougue-bar. Longe de mim a soberba, a avareza, a gula, a inveja, a ira, a acídia e a luxúria, mas me confesso um pecador capital e assim me proclamo um agnóstico ao afirmar que os freqüentadores: Gilmar, Serginho, Aroaldo, Belô, Biligil, Carlinhos, Binga, Fernando, Madeira, Reginaldo e tantos outros não estão em pecado, apenas apreciam os prazeres da carne.
Depois que a linguiça do padre Tiãozinho ficou famosa e passou a frequentar os mais requintados paladares, o açougue do Fabinho se transformou em um santuário, onde os fiéis vão religiosamente saciar sua fome e sua sede, e o padre Tiãozinho vai celebrar sua devoção por aquela iguaria.
refrago@gmail.com

sábado, 6 de novembro de 2010

Céu da Mouraria - MADREDEUS / Wim Wenders

POÉTICA & MUSICA - Entre Fernando Pessoa e Walt Whitman

Poética: Entre Fernando Pessoa e Walt Whitman

Assisto ao DVD “Estranha forma de vida”, de Amália Rodrigues, que Dulce Pontes interpreta, dando ainda mais dramaticidade. Encontro-me em êxtase poético e ainda nem fumei ópio. Um sentimento lusitano me invade. Sinto ânsia de mar e uma angústia peninsular vem me arrebatar. Arranca-me de mim e pelas mãos me leva a visitar lugares em Portugal. Locais que eu nunca estive. Talvez sodade, este fado lusitano de estar sempre se redescobrindo.
Fernando Pessoa me conduz a passeio pela tarde de Lisboa. O sol em raios lânguidos deita-se sobre o mar de manso. A tarde lisboeta é cinzenta, com raros lumes e um tanto sem cores. Os telhados dos sobrados próximos ao cais estão sobressaltados de solidão aspergida pela dor das naus que não regressaram.
Poesia é precisa e insensata. Eu sou insensato e impreciso. Um amigo me diz que tenho alma feminina. Não me importo com a lembrança desta observação. Talvez seja isto que me faça entender tanto as mulheres, sofrer por elas, e saber e querer amá-las, tanto!
- Vamos até o Café À Brasileira? – me convida Fernando Pessoa. Sem pudores, nos demos as mãos e fomos ao Café. O ambiente é emblemático. Dizia-se que no Porto e Coimbra se estudava e trabalhava, mas era em Lisboa, no Café À Brasileira, que se faziam revoluções. O poeta se sente à vontade. Declama um poema ao Tejo. - “Viver não é preciso”, caríssimo Fernando! Faço esta óbvia e inequívoca constatação quase sem refletir a quem destinei o precioso dístico. Com os pés fincados nas águas do Tejo, sonho com outros rios, os rios de minha aldeia. Ela é tão pequenina e está perdida na história portucalense e brasileira. O poeta quase me consola, enquanto uma saudade dilacerante e esse remetimento tomam conta de mim.
- Que brisas me sopram da Cruz do Monte?
Decerto, não é a mesma que invade a foz do Tejo, trazendo ares salobros de oceanos. E mais uma que vem a sueste, lufada de áridos clamores dos desertos marroquinos. Não me arrefecem tais ares, ao contrário, inflamam minh’alma estertora que crocita em respiração oblíqua, buscando os ares de minha terra e a lembrança de minha aldeia.
- Que lamentos me vêm da Cruz-das-dores?
Não são os lamentos das costas africanas lanhadas por mares bravios. São, na verdade, lembrança de gemidos que deixei alhures, lugares anteriores ao caos, pouco antes de me pregarem na cruz.
Comemos, bebemos e rimos (um pouco tristes) no Café À Brasileira. Minha alma aflita não se susteve, nem com o repasto nem com o vinho. Fernando Pessoa amava Walt Whitman. Com os olhos mirados no Tejo, o poeta declama “Saudação a Walt Whitman”, depois um fragmento de “Canto a mim mesmo”: “Eu sou um poeta do Corpo/ e sou um poeta da alma/ as delícias do céu estão em mim/ e os horrores do inferno estão em mim/ - o primeiro eu enxerto e amplio ao meu redor/ o segundo eu traduzo em nova língua...”
Não era para você chorar, Fernando. Era eu que deveria estar em prantos no teu colo e você, poeta, a me consolar. Mas eu não tenho o recato de uma dama da aristocracia inglesa. Sou prostituta, plebéia, cachorra, “periguete”, querendo te beijar a boca para arrancar de ti tua poesia e dela me apossar para me tornar poeta.
Com seu jeito fleumático, altivo, frágil, olhar descomprometido por detrás do pince-nez, timidez de magreza esquálida, quis ele me confessar seus amores, suas desditas. Eu não tinha ouvidos para seus lamentos. Pedi-o licença, tinha mais urgência em revelar-lhe minha vida ordinária, sem nada de extraordinário, sem poesia, muito simples, sem sobressaltos ou coisa grande, notória, que merecesse menção ou relato mais detido. Nada. Absolutamente nada! A não ser essa incapacidade de ser poeta e a crença de que ao beijar-lhe a boca também me tornaria poeta. E através do agraciado dom, pudesse expulsar meus males em poemas catárticos, sem valor algum, é verdade, mais de muita sanidade para esta alma doente, sem ninguém para consolação, sem sorte nenhuma amasiada. Nem de ter, pelo menos, uma amante para falsamente me amar e eu lhe confessar as inconfessáveis dores d’alma.
Fechei o livro de Fernando Pessoa, repousei-o sobre a mesa, coloquei junto os óculos, desliguei o DVD. Queria ser Walt Whitman!
refrago@gmail.com

MUSICA & POÉTICA Madredeus: "O Tejo"