segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Posidônio e o pum causador do efeito estufa

Possidônio e pum causador do efeito estufa
Possidônio é um matuto que mora nas margens do rio São Francisco, próximo ao povoado da Extrema, nos limites dos municípios de Bom Despacho, Dores do Indaiá e Martinho Campos. Ele tem um pequeno pedaço de terra, um ranchinho construído a sopapo, é autodidata, vive escarafunchando todas as novidades do mundo moderno nos jornais, revistas e livros. Letrou-se assim. Agora, discute Platão, fala sobre o Acelerador de Partículas, Shakespeare, política, etc. Ainda conserva certa ingenuidade. Seus modos e jeito caipira não mudaram. Mas para maioria das coisas da vida é bastante astuto.
Cheguei à sua casa e o encontrei com dois balaios enormes cheios de rolhas de cortiça.
- O que é isto, Possidônio? Você tresvariou?
- Ainda não, sô! Vou proteger a camada de Ozônio. Veja isto aqui.
E mostrou-me uma dessas revistas na área das ciências. Ela trazia uma reportagem sobre as causas do efeito estufa. E dentre elas estavam o arroto e o pum de ruminantes.
- Tá veno só? Porque eu preciso arroiá o fiofó deles?
E mudando de página, mostrou-me que na Nova Zelândia o governo queria instituir um imposto sobre flatulência animal.
- Tá ficando ruim da cabeça?
- Tô não não, sô! Viu? Do jeito que nossos políticos gostam de impostos, daqui a pouco será mais um para o povo pagar e eles lá em cima roubarem! Onde já si viu uma coisa dessas, pum zangar a camada de ozônio?
Depois de ler a reportagem, tentei explicar-lhe que o dano ambiental era causado porque os ruminantes durante o processo digestivo liberavam o gás metano, que é um gás altamente danoso à camada de Ozônio.
- Quer dizer que: arrotando ou soltando pum, minhas ovelhas e meu gado estão contribuindo para o aumento do aquecimento global?
- É por aí, Possidônio.
- Mais um motivo para eu arroiá e’s tudo!
Não consegui demovê-lo da idéia ecologicamente correta. Depois de passar toda manhã vedando os “tobas” dos ruminantes de seu sítio, ele deu as caras para o almoço. Sentamos à mesa. Tomamos uma dose homeopática de cachaça na cuia, agradecemos a Deus aquela refeição e quando começaríamos a nos deliciar daquela apetitosa galinha caipira com arroz branco, ouvimos alguns estrondos no pasto. Saímos apressadamente para ver o que acontecia... Pôu! Pôu! Pôu! Explosões aqui e acolá, por todo lugar. Chegamos à beira do curral e era só boi, vaca, bezerro e ovelha explodindo.
- Eh! Acho que eu não deveria ter amarrado também a boca deles, não é?
refrago@gmail.com

Só as cachorras me amam de verdade

Só as cachorras me amam de verdade
(A matemática do amor)
Casei-me por seis vezes, embora sempre quisesse um relacionamento duradouro. Não chegarei ao sétimo, porque além de sete ser conta dos mentirosos, o número sete é também cabalístico. Errei nos cinco casamentos anteriores. E não pretendo errar mais. Para isto desenvolvi uma tecnologia: “A Matemática do Amor”. Não estou sendo nem um pouco original. Ela já existia, embora não a conhecesse. Nela encontrei os parâmetros irrefutáveis e precisos no auxílio à busca de uma esposa e de um relacionamento perfeitos. Foi somente mais tarde que tomei conhecimento de um trabalho mais aprofundado de um psicólogo americano.
Nunca ouviu falar na “Matemática do Amor”? No meu estudo, e eu nunca fui lá de muito estudo, ela não passa de uma aritmética do relacionamento e consiste mais ou menos no seguinte: homem esperto + mulher esperta= romance; homem esperto + mulher burra = caso; homem burro + mulher esperta= casamento; homem burro + mulher burra= gravidez. Obviamente que o trabalho do psicólogo americano é muito mais elaborado e envolve variáveis como: companheirismo, cumplicidade, amizade, sexo, respeito, fidelidade, etc., como elementos de mensuração de um relacionamento perfeito. Talvez seja por isso que os cinco primeiros casamentos não tenham dado certo.
Se fui feliz nesses casamentos? Fui sim. Por dez vezes. No dia da lua-de-mel e no dia da separação. Não me condene. Você provavelmente esteja passando por isso. Mas vai um conselho de quem tem experiência no assunto: não se precipite. Aplique a “matemática do amor” ao seu relacionamento. É muito simples: de um lado enumere dez sentimentos e comportamentos positivos seu e de sua companheira, dê notas de 0 a 10 para cada um dos itens. Na outra coluna, enumere as 10 coisas negativas entre vocês (as piores, como não levantar a tampa do vaso ao fazer xixi ou aquele pijama velho dela, coisas que desgastam o relacionamento no dia a dia). Deu nota para cada um dos itens? Para eficácia do teste, volto enfatizar, não deixe nada de fora da lista. Os defeitos escabrosos principalmente, como aquelas suas falhas de ereção ou a frigidez dela. Agora some os pontos de cada coluna, positivos e negativos. Veja o resultado: se a diferença entre eles for acima de 50% negativa, me perdoe, mas vocês dois são homo afetivos. Tratem de procurar seus pares. Se a diferença for de 40% a 10% negativa, vocês são incompatíveis. Procurem um advogado, é caso perdido. Se a diferença for 0%, vocês estão no limite do relacionamento, procurem ajuda, façam terapia de casal. De 10 a 30% positiva, relacionamento instável, mais diálogo entre vocês e resolvam os pontos negativos. De 40 a 60%, vocês estão na média nacional das grandes cidades. Ninguém consegue manter um relacionamento perfeito saindo de casa às cinco da manhã e voltando as dez da noite. Você mora no interior? Então precisa melhorar. Entre 70 e 80%, vocês não têm preocupação com o casamento. Moram em condomínios de luxos, têm carros importados, vivem uma vida de aparências, ambos têm amantes e se acham muito felizes com a falsa vida que levam. Agora, se a diferença for maior que 99% positiva, o teste não tem validade, pois não vale fazê-lo com amante.
Estava me esquecendo: “só as cachorras me amam de verdade” foi um título aleatório. Mudei de assunto no transcurso do texto. Mas para criar nexo entre ambos, farei um remendo aqui neste ponto. O meu sexto casamento é perfeito. Ela tem um personal exclusivo (bota exclusivo nisto), carro importado e um cartão de crédito sem limites. Fica o dia inteiro no shopping fazendo compras, enquanto eu fico cuidando de minhas “cachorras”.
victorlasson@gmail.com
Victor Laçon

Victor Laçon, francês, 41 anos, jornalista e escritor, apaixonado pelo Brasil, mais pelas brasileiras, radicado no Rio há 11 anos. É correspondente do Le Monde ou Le Figaro
“Batendo na porta do céu”

É segunda-feira. É hora de partir. Voltar para a grande metrópole Tomo emprestado de Pablo Neruda um verso de “A Canção Desesperada”: “É a hora de partir. Oh abandonado”. Vejo a cidade saindo de mim através da janela do carro.
A casa ficou me olhando. A mulher me olhou quase triste. Olharam-me languidamente meus cachorros. Os filhos já não me vêm partir. A manhã inteira se despede de mim: é hora de partir.
Saindo da cidade, vejo uma criança caída de sua bicicleta. Será que ele despencou do céu? Está imóvel o pequeno anjo. Pessoas atônitas correm em seu socorro. Carros param, interrompem seus trajetos e seus destinos. Só eu cumpro inexoravelmente com o meu: é hora de partir. Ouço um “toc-toc”. O pequeno anjo bate à porta do céu. São Pedro não permite a entrada de crianças às segundas-feiras pela manhã. Ainda é muito cedo para morrer. Os serafins harpejam canções de despertar para o menino. Deitado de bruços, com o rosto colado no asfalto, ele sonha que dança com arcanjos. O mundo inteiro para ao seu redor, menos eu. O menino deitado torto no chão. A bicicleta retorcida ao seu lado. Minha cabeça se contorcendo para trás para vê-lo ressuscitar. “Toc toc toc”, ele está batendo na porta do céu. É muito cedo para morrer, menos para mim que já morri.
- Acorde, levante-se e vá brincar. Diz São Pedro ao pequenino.
Meus pensamentos e meus olhos tomam outro rumo. Meu coração, não. Meu coração ficou lá, esquecido naquela esquina, estendido no chão junto ao garoto que caiu da bicicleta.
- Qual é o seu nome? Qual é a sua idade? Mas ele é um anjo. E os anjos não morrem jamais.
Já cruzei a cidade. Agora estou na rodovia. Vejo um cachorro abandonado. Como o menino caído, ele pede em silêncio por socorro. Tem um olhar triste e um desespero contido. Ao menor sinal de ajuda, seu pequeno rabo balança alegremente. Queria ampará-lo, o cachorro. Ressuscitar o menino da bicicleta.
Transformei-me em um refém de minhas idas e vindas. E não consigo parar. Não parei para socorrer o menino. Não parei para acolher o cão sem dono. Segui o meu rumo arrastado pelo destino de estar sempre partindo. Mas meu coração, não. Acolheu o cão sem dono, lambendo-o com alegria. Ficou com o menino, ajudou-o a se levantar e saíram os dois a Brin car.
Não sei qual foi o desfecho de nenhuma das duas histórias. Quando estiver de volta saberei. Tramo finais felizes para o menino e o cachorro. Mudo o destino das pessoas e das coisas sobre as quais escrevo. Só não mudo o meu destino. Preciso reescrever a minha história.
Fragmentos de mim vão ficando para trás na estrada. Cacos de uma vida a serem recolhidos e colados. Talvez seja a hora de fazer o caminho de volta e ir colando-os um a um.
Talvez seja eu o menino que está caído no chão.
O cachorro abandonado talvez seja eu.
Só eu não mudo minha tragédia diária.
Como na canção de Bob Dylan, sou eu quem está batendo na porta do céu.
“Toc toc toc”, estou batendo na porta do céu.
refrago@gmail.com







































A casa do Peladinho

Num lugar chamado Boa Vista, retirado uma vintena de quilômetros para leste da cidade de Paineiras, nasceu José, de nome. Peladinho, de apelido. Causa de uma derribada abrupta dos cabelos. Daí, Peladinho. Uns 65 anos. Mais de cinquenta só naqueles ermos. Alto, magro, moreno, quase escuro, olhos verdes, fala mansa, baixa, às vezes inaudível, que mora deserdado de tudo e de todos naquele alto de planície à beira de um pequeno riacho, virado rio-lagoa grande, varada de águas, juntadas pela mão do homem, e solidão. Muita solidão.
A casa é simples. Simplesinha. Rústica. Rusticazinha. Lugar bom de morar. Bonzinho. Assim é a casa do seu Zé Peladinho. Construída por ele, com seus braços, com seu suor, sem nenhuma razão geométrica, no bestunto. Tudo no olho. O resultado é uma casa com janelas pequenas e tortas, paredes desalinhadas, toda assimétrica, mas acolhedora. Muito acolhedora.
A casa, como tudo em sua tortuosa vida, é fora do esquadro, fora dos eixos, sem cálculos, imprecisa, um desencontrar constante das linhas do destino com as da felicidade. Mas será que foi ele mesmo que projetou assim, a sua casa, a sua vida? Ou, talvez, foi ela (a vida) que o aprisionou, para que ele lhe fizesse as vontades assim. Ou, ainda, assim como a casa que se lhe ia brotando, e lhe ordenando como queria ser construída. A casa transformou-se em refúgio para almas inquietas e Peladinho, em um uguento à base de amizade e tolerância para com os inquietos que passam por lá. E por lá, ficam.
Por uns tempos teve mulher e filhos, mas depois a mulher largou-se dele e daqueles ermos, passando a mão nos dois rebentos, apartando-se daquele sofrimento, de tudo dificultoso e de coisas minguado, depois que ele passou quase seis meses numa carvoaria e, quando voltou, tinha se ido todo mundo. Só ficaram o cachorro e aquela dor insuportável.
Abateu-se não, o senhor José. Criou força e raízes naquele desconsolado lugar, agora de muitas águas represadas, como seu sofrimento, muito eucalipto de plantio e algumas almas errantes, como esta que vai buscar adjutório, bálsamo, para seus dolorimentos e compressa fria para sua alma “dilurida”, naquelas distâncias de sentimentos e de pessoas, só pássaros, animais serpentes e outros bichos escassos também pela mão do homem e solidão. Muita solidão.
A casa tem sala com cristaleira, um arreio enfiado numa travessa nos umbrais que sustentam as vergas, três quartos, sala e cozinha, em antes, uma chifraria de cabeça de gado encalcado num mourão de cerca para espantar os maus espíritos. Um quarto à esquerda, onde ele dorme, com duas camas de solteiro cobertas por colcheline e colcha de retalhos. Outro quarto à direita, menor, uma espécie de despejo para tralhas de cavalo e ferramentas de roça. E mais um à esquerda, contíguo ao primeiro, este agora parece repleto de entulhos: fotografia a lambe-lambe da família com um ar distante de felicidade nos rostos, como se adivinhassem o futuro. Dois vidrinhos, um com lágrimas dos meninos, outro, que fica à mostra, com riso, quase gargalhada, deles. Amontoado num canto do quarto, um tiquinho de felicidade, varrida daqui, acolá e juntada e dela ele não quer se dispor. Também tem guardado na gaveta da cômoda um punhado de desilusão, da qual ele não consegue se livrar. Junto ao montinho de felicidade, tem um amontoado de esquecimento que, vez em quando, vem o vento da lembrança reavivar. A cozinha com fogão a lenha, uma prateleira de madeira escurecida e as paredes, pela fuligem, uma geladeira antiguíssima e utensílios, todos muito areados, espalhados sistematicamente pelas prateleiras. Sistematicamente desordenados.
A casa tem sua frente voltada para o poente, deste modo é como se o sol entrasse pela porta da cozinha e saísse pela porta da sala. Na verdade, é a vida que lhe entra pelos fundos e escapa-lhe pela frente, não se pousando em nenhum cômodo, como a felicidade que passa direto por ali, sem pouso. Não tem sofrimento nisso. Só fato. Constatação. Sem afetação, porque o seu Zé Peladinho agarra a vida de frente, como se ela um boi bravo fosse. Arrasta aquelas precatas desde em antes de o sol nascer, até ele se pôr por inteiro por detrás do eucaliptal e do horizonte. Vagando e labutando. Labutando e vagando.
Vai assim ele, pois, arrastando elas, as precatas, desviando de cobra e bicho, mulher vagabunda, sofrimento e os outros tantos perigos desta vida terrena, sem ter com quem prosear, não por faltar assunto, mas por falta de outro igual que lhe estenda a mão, a atenção e a compaixão, não que desta última ele necessite. Mas gente humana para lhe ouvir as histórias, como este que quase pula para dentro daquela vidinha simples, invejando-lhe o tanto de nada feito, os desencontros, o partir e o ficar, como o mistério da vida diária naqueles arredados de tudo, até do olhar de Deus, querendo atalhar a vida, fazer a travessia, deixar tanto sofrimento na outra margem do rio, porque viver é muito perigoso. Muito perigoso
refrago@gmail.com