segunda-feira, 13 de setembro de 2010

“Batendo na porta do céu”

É segunda-feira. É hora de partir. Voltar para a grande metrópole Tomo emprestado de Pablo Neruda um verso de “A Canção Desesperada”: “É a hora de partir. Oh abandonado”. Vejo a cidade saindo de mim através da janela do carro.
A casa ficou me olhando. A mulher me olhou quase triste. Olharam-me languidamente meus cachorros. Os filhos já não me vêm partir. A manhã inteira se despede de mim: é hora de partir.
Saindo da cidade, vejo uma criança caída de sua bicicleta. Será que ele despencou do céu? Está imóvel o pequeno anjo. Pessoas atônitas correm em seu socorro. Carros param, interrompem seus trajetos e seus destinos. Só eu cumpro inexoravelmente com o meu: é hora de partir. Ouço um “toc-toc”. O pequeno anjo bate à porta do céu. São Pedro não permite a entrada de crianças às segundas-feiras pela manhã. Ainda é muito cedo para morrer. Os serafins harpejam canções de despertar para o menino. Deitado de bruços, com o rosto colado no asfalto, ele sonha que dança com arcanjos. O mundo inteiro para ao seu redor, menos eu. O menino deitado torto no chão. A bicicleta retorcida ao seu lado. Minha cabeça se contorcendo para trás para vê-lo ressuscitar. “Toc toc toc”, ele está batendo na porta do céu. É muito cedo para morrer, menos para mim que já morri.
- Acorde, levante-se e vá brincar. Diz São Pedro ao pequenino.
Meus pensamentos e meus olhos tomam outro rumo. Meu coração, não. Meu coração ficou lá, esquecido naquela esquina, estendido no chão junto ao garoto que caiu da bicicleta.
- Qual é o seu nome? Qual é a sua idade? Mas ele é um anjo. E os anjos não morrem jamais.
Já cruzei a cidade. Agora estou na rodovia. Vejo um cachorro abandonado. Como o menino caído, ele pede em silêncio por socorro. Tem um olhar triste e um desespero contido. Ao menor sinal de ajuda, seu pequeno rabo balança alegremente. Queria ampará-lo, o cachorro. Ressuscitar o menino da bicicleta.
Transformei-me em um refém de minhas idas e vindas. E não consigo parar. Não parei para socorrer o menino. Não parei para acolher o cão sem dono. Segui o meu rumo arrastado pelo destino de estar sempre partindo. Mas meu coração, não. Acolheu o cão sem dono, lambendo-o com alegria. Ficou com o menino, ajudou-o a se levantar e saíram os dois a Brin car.
Não sei qual foi o desfecho de nenhuma das duas histórias. Quando estiver de volta saberei. Tramo finais felizes para o menino e o cachorro. Mudo o destino das pessoas e das coisas sobre as quais escrevo. Só não mudo o meu destino. Preciso reescrever a minha história.
Fragmentos de mim vão ficando para trás na estrada. Cacos de uma vida a serem recolhidos e colados. Talvez seja a hora de fazer o caminho de volta e ir colando-os um a um.
Talvez seja eu o menino que está caído no chão.
O cachorro abandonado talvez seja eu.
Só eu não mudo minha tragédia diária.
Como na canção de Bob Dylan, sou eu quem está batendo na porta do céu.
“Toc toc toc”, estou batendo na porta do céu.
refrago@gmail.com

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