segunda-feira, 13 de setembro de 2010








































A casa do Peladinho

Num lugar chamado Boa Vista, retirado uma vintena de quilômetros para leste da cidade de Paineiras, nasceu José, de nome. Peladinho, de apelido. Causa de uma derribada abrupta dos cabelos. Daí, Peladinho. Uns 65 anos. Mais de cinquenta só naqueles ermos. Alto, magro, moreno, quase escuro, olhos verdes, fala mansa, baixa, às vezes inaudível, que mora deserdado de tudo e de todos naquele alto de planície à beira de um pequeno riacho, virado rio-lagoa grande, varada de águas, juntadas pela mão do homem, e solidão. Muita solidão.
A casa é simples. Simplesinha. Rústica. Rusticazinha. Lugar bom de morar. Bonzinho. Assim é a casa do seu Zé Peladinho. Construída por ele, com seus braços, com seu suor, sem nenhuma razão geométrica, no bestunto. Tudo no olho. O resultado é uma casa com janelas pequenas e tortas, paredes desalinhadas, toda assimétrica, mas acolhedora. Muito acolhedora.
A casa, como tudo em sua tortuosa vida, é fora do esquadro, fora dos eixos, sem cálculos, imprecisa, um desencontrar constante das linhas do destino com as da felicidade. Mas será que foi ele mesmo que projetou assim, a sua casa, a sua vida? Ou, talvez, foi ela (a vida) que o aprisionou, para que ele lhe fizesse as vontades assim. Ou, ainda, assim como a casa que se lhe ia brotando, e lhe ordenando como queria ser construída. A casa transformou-se em refúgio para almas inquietas e Peladinho, em um uguento à base de amizade e tolerância para com os inquietos que passam por lá. E por lá, ficam.
Por uns tempos teve mulher e filhos, mas depois a mulher largou-se dele e daqueles ermos, passando a mão nos dois rebentos, apartando-se daquele sofrimento, de tudo dificultoso e de coisas minguado, depois que ele passou quase seis meses numa carvoaria e, quando voltou, tinha se ido todo mundo. Só ficaram o cachorro e aquela dor insuportável.
Abateu-se não, o senhor José. Criou força e raízes naquele desconsolado lugar, agora de muitas águas represadas, como seu sofrimento, muito eucalipto de plantio e algumas almas errantes, como esta que vai buscar adjutório, bálsamo, para seus dolorimentos e compressa fria para sua alma “dilurida”, naquelas distâncias de sentimentos e de pessoas, só pássaros, animais serpentes e outros bichos escassos também pela mão do homem e solidão. Muita solidão.
A casa tem sala com cristaleira, um arreio enfiado numa travessa nos umbrais que sustentam as vergas, três quartos, sala e cozinha, em antes, uma chifraria de cabeça de gado encalcado num mourão de cerca para espantar os maus espíritos. Um quarto à esquerda, onde ele dorme, com duas camas de solteiro cobertas por colcheline e colcha de retalhos. Outro quarto à direita, menor, uma espécie de despejo para tralhas de cavalo e ferramentas de roça. E mais um à esquerda, contíguo ao primeiro, este agora parece repleto de entulhos: fotografia a lambe-lambe da família com um ar distante de felicidade nos rostos, como se adivinhassem o futuro. Dois vidrinhos, um com lágrimas dos meninos, outro, que fica à mostra, com riso, quase gargalhada, deles. Amontoado num canto do quarto, um tiquinho de felicidade, varrida daqui, acolá e juntada e dela ele não quer se dispor. Também tem guardado na gaveta da cômoda um punhado de desilusão, da qual ele não consegue se livrar. Junto ao montinho de felicidade, tem um amontoado de esquecimento que, vez em quando, vem o vento da lembrança reavivar. A cozinha com fogão a lenha, uma prateleira de madeira escurecida e as paredes, pela fuligem, uma geladeira antiguíssima e utensílios, todos muito areados, espalhados sistematicamente pelas prateleiras. Sistematicamente desordenados.
A casa tem sua frente voltada para o poente, deste modo é como se o sol entrasse pela porta da cozinha e saísse pela porta da sala. Na verdade, é a vida que lhe entra pelos fundos e escapa-lhe pela frente, não se pousando em nenhum cômodo, como a felicidade que passa direto por ali, sem pouso. Não tem sofrimento nisso. Só fato. Constatação. Sem afetação, porque o seu Zé Peladinho agarra a vida de frente, como se ela um boi bravo fosse. Arrasta aquelas precatas desde em antes de o sol nascer, até ele se pôr por inteiro por detrás do eucaliptal e do horizonte. Vagando e labutando. Labutando e vagando.
Vai assim ele, pois, arrastando elas, as precatas, desviando de cobra e bicho, mulher vagabunda, sofrimento e os outros tantos perigos desta vida terrena, sem ter com quem prosear, não por faltar assunto, mas por falta de outro igual que lhe estenda a mão, a atenção e a compaixão, não que desta última ele necessite. Mas gente humana para lhe ouvir as histórias, como este que quase pula para dentro daquela vidinha simples, invejando-lhe o tanto de nada feito, os desencontros, o partir e o ficar, como o mistério da vida diária naqueles arredados de tudo, até do olhar de Deus, querendo atalhar a vida, fazer a travessia, deixar tanto sofrimento na outra margem do rio, porque viver é muito perigoso. Muito perigoso
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